terça-feira, 9 de agosto de 2011

andaimes pingentes


dos que tivemos notícia, hoje foram nove em salvador.
por ano são mais de três mil em todo o país, que acabam no chão como um pacote tímido.

o jornal baiano anuncia um 'acidente'.
mas a primeira definição do dicionário contraria a notícia da publicação:
"substantivo masculino (do latim accidente) 1. O que é casual, fortuito, imprevisto".

a morte ali era anunciada.
quantos cabras marcados para morrer por condições de trabalho inseguras, sem treinamento ou instrumentos adequados?
a morte-de-repente sai no jornal. agride, revolta.
embota os olhos de cimento e lágrima.

cinicamente a morte-homeopática - pela terceirização, pelas jornadas de trabalho extenuantes, pelos salários baixos, pelo ataque aos direitos e pela precarização e banalização da vida - essa morte, a morte-aos-poucos é vendida por eles como a prova de um país que cresce em emprego e renda.

sim, sacrificados em prego.
sim, a renda do lenço da viúva.

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mas das bases carcomidas dessa construção,
surgem as fraturas do edifício, cada vez mais expostas em passeio público.
irão implodir?

"se eu construo, eu destruo".
é tempo, então, de demolir.

basta dessa construção que nos trata como máquinas!
é preciso demolir e, em seu lugar, colocar de pé nossas paredes sólidas - tijolo por tijolo num desenho mágico e lógico.

dos escombros dessa vida há de surgir uma outra, projetada por nosostros.
neste belo concreto, flutuaremos no ar como pássaros e descansaremos como se sempre fosse sábado.

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mas hoje, por ora, enquanto o prédio ainda se mantém de pé e andamos pelos andaimes-pingentes-que-a-gente-tem-que-cair, choro e escrevo por estes nove filhos da classe operária como se fossem os últimos:

antônio reis do carmo (armador)
antônio elias da silva (carpinteiro)
antônio luis alves dos reis (carpinteiro)
elio sampaio (pedreiro)
josé roque dos santos (pedreiro)
jairo de almeira correia (ajudante prático)
lourival ferreira (armador)
martinho fernandes dos santos (carpinteiro)
manoel bispo pereira (ajudante prático)

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pela fumaça e desgraça que a gente tem que tossir, pelas moscas bicheiras a nos beijar e cuspir, vocês hão de nos pagar.
pelos nove de hoje e pelos milhões que tombam todos os dias como pacotes flácidos, lutamos pela paz derradeira que enfim vai nos redimir.

e ela virá, dos escombros dessa construção insólita.

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domingo, 7 de agosto de 2011

sobre a reconciliação com as palavras e pernas ou sobre aqueles que movem o mundo [, os homens de ação]

penso nos quatro ou cinco textos começados e inconcluídos, nos seis ou sete livros marcados na primeira metade, e na porção de boas idéias não concretizadas.

o que explica estes caminhos não-percorridos até o final?
me faltou energia e fôlego. o eixo dançou feito bailarina descontente. o braço sofrendo com a falta da fortaleza muscular.
mas o que dizer, como justificar, se caminhos descobrimos andando, usando as pernas - essas que permanecem sadias?

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foi no exercício de sua função mais fundamental, o caminhar, fumando o rotineiro cigarro, que me veio à memória a sua conhecida habilidade - a habilidade delas, das minhas pernas.
pensei que a melhor maneira de valorizá-las seria lhes dar um desafio a altura:
"pernas molecas-em-forma-de-pinça,
descubram novas trilhas, superem as curvas e distâncias, o terreno desigual e o relevo íngreme!".

elas obedeceram ao comando que se expressou na forma de palavras.
as palavras se expressam no verbalizar ou na letra.
se é assim, a falta momentânea do comando, concretizada nesses meses (quase quatro!) sem o exercício da escrita, não se explica pela imobilização e fraqueza do braço, pela falta de energia e fôlego, tão pouco pelo girar do eixo.
eu posso dizer: "levanta e anda!". e é isso que eu digo agora:
levanta e anda!

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para mudar o mundo é preciso conhecê-lo.
à minha maneira o conheço através das retinas. aí reside a importância do conselho, que encaro como um mandamento: gardons les yeux ouverts.
conheço o mundo através das retinas. organizo o que conheço por meio das palavras.
se não as organizo na forma de conjugações verbais, adjetivações de sujeitos e construções de períodos, eu apenas vejo o mundo, não o conheço.

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[re]conheço agora que a mediação entre eu e o mundo são as palavras.
e agora que escrevo essas linhas restauro minha mediação com ele.
escrevendo restauro minha relação com este mundo-todo-vivo e [re]conhecendo-o só me vem à cabeça um verbo, conjugado no modo imperativo:

intervem tu.
intervenhamos nós.

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minha boca dita o comando:
levanta e anda.
com as pernas-de-pinça, corre o mundo. com as retinas, conheça-o.
com a destreza-que-tem-com-as-palavras, organiza o que conhece.
de mãos dadas e com a certeza de que carrega no ombro uma parcela-do-futuro-da-humanidade, intervem.

intervem tu.
intervenhamos nós.

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neste momento lembro-me do tango:
"con este poema no tomarás el poder - dice
con este poema no harás la revolución - dice
ni con miles de versos harás la revolución."

mesmo assim, sento à mesa e escrevo.

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palavra é coisa leve, o vento carrega.
ela só resiste ao tempo quando encontra o sujeito-que-realiza-o-verbo:

intervem tu.
intervenhamos nós.

cria tu.
criemos nós.

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ó vida-futura, nós te criaremos.
é a ação coletiva e consciente das massas proletárias guiadas pelo marxismo revolucionário!

é o partido, estúpida!

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domingo, 24 de abril de 2011

bem traçadas linhas de uma socialista

reproduzo uma crônica publicada ontem sobre a revolucionária rosa luxemburgo (e o lançamento de um livro que reúne toda sua obra epistolar) no sabático do estadão:


Minha querida Rosa, Acredito que você não considerará desrespeitosa esta forma de tratamento, principalmente vindo de um companheiro. A familiaridade para com você torna o desprezo impossível. Seu nome pertence até mesmo à lista mais concisa dos teóricos revolucionários, embora nossos acadêmicos marxistas, sempre prontos a citar Lukács e Lyotard, raramente citem Luxemburgo. Quando jovem militante - faz bastante tempo! - estudei o seu panfleto de 1900, Reforma ou Revolução, como pedra angular da tradição socialista. E também a sua análise da greve geral, escrita depois da revolução russa de 1905, que parece excepcionalmente oportuna hoje, quando no mundo todo as pessoas vão às ruas para protestar contra medidas de austeridade e exigir a deposição dos ditadores.

Talvez os "camaradas em suas poltronas" (para puxar um pouco as orelhas dos professores) ainda descubram que Luxemburgo é um nome que precisa ser lembrado. Mas as pessoas cujas suas ações políticas se inspiraram em seu trabalho preferem há gerações chamá-la Rosa. Os próprios anarquistas fazem isso! Talvez você se surpreenda. Eles a tratam como um espírito com o qual têm grande afinidade: a antítese de Lenin e de Trotski. De fato, você criticou os bolcheviques - embora não mais do que os bolcheviques criticaram a si próprios na época. E uniu forças com eles denunciando os de esquerda que inventavam racionalizações "progressistas" dos senhores da guerra dos seus países. (As coisas mudaram tanto em um século, Rosa! e ao mesmo tempo tão pouco!)

O carinho com que pronunciamos o seu nome não é, permita-me explicar, uma resposta sentimental aos seus escritos políticos. Eles são enérgicos, desprovidos de sentimentalismo, como os de qualquer outro polemista. Você não suportava os renegados. Alguém perguntou certa vez qual deveria ser o seu epitáfio e o de sua amiga Clara Zetkin, e você respondeu: "Aqui jazem os dois últimos homens da social-democracia alemã". O espírito da frase não foi apreciado pela liderança do partido, e nossas feministas a submeteram a um severo sermão. Você não seria muito útil para a esquerda americana contemporânea, na qual o policiamento recíproco do comportamento verbal muitas vezes é considerado ativismo.

Ao contrário, você foi mais de uma vez para a cadeia onde passou a maior parte da 1ª. Guerra Mundial; foi assassinada pela direita durante a revolução alemã de 1919, e o seu corpo foi jogado em um canal. Admiramos os mártires, mas em geral sem nos sentirmos intimamente ligados a eles. Isso mudou no início da década de 20, com a publicação das cartas que você escreveu na prisão.

Suponho que o seu ódio pela guerra e sua confiança em que ela e outras brutalidades sociais poderiam ser extirpadas, seriam considerados românticos, pelos padrões cruéis da realpolitik dos dias de hoje. Mas como você descreve os pássaros que pousam na janela da sua cela, seus momentos de euforia e desespero, os trechos de Goethe que tinha memorizado, a vontade de ver seu gato, Mimi - e parecia que você escrevia com o sangue que fluía em seu coração -, o leitor achou natural considerá-la amiga, ou quase. Você se tornou a nossa Rosa.

Há seleções da sua correspondência disponíveis em inglês, mas agora a Verso publicou a coletânea mais abrangente de suas cartas como o primeiro volume de uma edição de suas obras completas. É embaraçoso como foram poucos os seus escritos políticos e econômicos traduzidos na minha língua nos últimos 90 anos. É que nunca interessou aos chamados países socialistas divulgar a sua obra, pois o seu ódio pelo autoritarismo de todo tipo era tão claro. A equipe que organizou essa edição fez um trabalho fantástico, reuniu muitos itens que antes não estavam disponíveis em inglês e forneceu uma lista útil e extremamente completa dos nomes das pessoas às quais você escreveu ou mencionou de passagem. A tradução é uma versão reduzida de uma coleção alemã a qual, por sua vez, foi extraída de uma edição em seis volumes (que contém também cartões-postais e telegramas). Peter Hudis, o americano que faz parte da equipe de organizadores, também trabalhou no excelente Rosa Luxemburg Reader em 2004. Acaso essa reapresentação da sua obra em inglês corresponde a um aumento repentino de um público específico? Esperemos, mas tenho minhas dúvidas. Certamente foi útil o fato de existir uma fundação internacional Rosa Luxemburgo que prestou sua assistência na publicação do novo livro.

Revisitando-a nesse contexto, sou movido desta vez não tanto pelo lirismo, mas pela tremenda paixão sugerida numa centena de pequenos detalhes de sua vida de agente política - uma mulher que dedicou todo o seu tempo a organizações socialistas e trabalhistas. Em 1893, mal saída da adolescência, você estava em Genebra trabalhando num jornal destinado à classe operária do seu país, a Polônia. Além de escrever seus próprios artigos, você tinha de revisar o trabalho medíocre de outros colaboradores, pagar o impressor e ainda cuidar do ingresso clandestino de cada edição no país.

Os conflitos, pessoais e políticos, nunca cessaram. Nem a escassez de dinheiro. E quando você se estabeleceu na Alemanha - casando com um companheiro a fim de obter a nacionalidade - todas as tempestades e as tensões continuaram em um grau ainda maior. Em seus artigos você criticou energicamente os carreiristas e os indecisos, mas aqui há tão pouca amargura (mesmo quando você é atormentada pelos canalhas e porcos sexistas) numa atitude, se não santa, pelo menos exemplar. O autorretrato contido nessas páginas é o da revolucionária profissional cuja vocação é, perdoe a expressão, espiritual.

Minha missiva saiu mais longa do que eu pretendia, entretanto há mais uma coisa a ser dita. Enquanto você estava na prisão em 1917, escreveu a uma amiga dizendo: "Sei que para cada pessoa, para cada criatura a vida é a única coisa que realmente lhe pertence, e a cada mosquitinho que descuidadamente espantamos e esmagamos ... é como se o fim do mundo fosse a destruição de toda vida". Lendo essa passagem, e muitas outras páginas desse livro, não pude deixar de me apaixonar por você, Rosa querida.

Por favor considere-me pois, agora, e sempre, o seu, pela revolução, S.



Tradução de Anna Capovilla

Scott McLemee faz parte do Conselho Editorial da publicação New Politics

quinta-feira, 7 de abril de 2011

sobre os jovens lutadores de ontem e hoje

no rosto ainda não tinham as marcas do tempo. vestiam jeans e camiseta. os tênis sujos e baixos se remetiam à época que brincavam de bola na rua. atentos ouviam relatos sobre dias de bestialidade. era 1º de abril de 2011 – há 47 anos logrou-se o golpe militar no brasil, que se forjou como um intento claro de interromper a entrada em cena dos trabalhadores e da massa oprimida como sujeitos da história. as mortes, a tortura os seqüestros e repressão de outrora funcionam ainda hoje como uma máquina do estado burguês de moer gente. e como uma máquina que também nos recria como uma gente sem história.

chegaram cantando. lá de dentro ouvia-se que aquele era dia de reconstruir a memória. punhos fechados, dedos em riste. a veia saltada na garganta. os sorrisos eram macios e iluminados. não traziam nas costas o peso das derrotas. mas carregavam nas mãos a bandeira das gerações anteriores: ‘abaixo a ditadura! povo no poder!’. entendiam que é preciso se rebelar contra as correntes do passado, que representam as apostas estratégicas equivocadas, e que teimam em atar nosso futuro [‘desatai o futuro!’ – grita maiakovski do ano de 1917].

sentados no chão seguiam ouvindo os relatos dos dias de chumbo. os ouvidos arderam com a história do jovem trotskista torturado e assassinado pelas mãos dos militares e da polícia política. se emocionaram ao ouvir do veterano declarar: ‘a partir de hoje vocês não podem mais dizer que não viveram tudo isso’. a memória, tão desbotada pela ação consciente e cretina das classes dominantes, recobrou suas cores e traços nas dezenas de olhos marejados. olavo hanssen simbolicamente renasceu ali. ele ressurgiu no compromisso de combate. combatemos por nós e pelos que estão a caminho. mas é também para honrar e fazer valer a luta dos que tombaram no fronte.

no outro dia, numa pichação em um muro da vizinhança, reconheci o rosto dos meus companheiros: ‘arquivos da ditadura – abertura já!’.


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somos a juventude que pulsa no ritmo de tahir. aprendemos a falar árabe em 11 de fevereiro deste ano. nossos professores, os trabalhadores em greve de suez. somos a juventude que exercita o francês desde 68 e no ano passado nos lembramos que este é um idioma conhecido. nas ruas de atenas, ao lado do povo, entregamos a papandreou um presente de grego: greve geral contra os ajustes do governo! na semana passada subvertemos a formalidade do chá das 5 nas terras da rainha. abram espaço para uma nova juventude! ela é valente, aguerrida e vermelha.


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http://www.ler-qi.org/spip.php?article2865

http://www.ler-qi.org/spip.php?article2866

quarta-feira, 30 de março de 2011

diário de uma jovem professora e de sua amiga terceirizada

o efeito dos três copos de chá que bebi no intervalo se fez sentir por volta das 11h.
de janela, esperava o sinal para a sexta aula. é inusitado escrever isso, mas eu estava morrendo de vontade de fazer xixi.
deixo a sala de professores, onde estava o representante de algum dos vários sindicatos do magistério. ele veio falar sobre a importância de termos uma representação política que nos garanta lazer, tentando nos impressionar com fotos de uma confortável colônia de férias em ubatuba (!!!!).

ainda no corredor percebo que ela estava limpando o banheiro.
- bom dia, camila! trabalhando sozinha? cadê a raquel, que eu não vi hoje?
- pois é, professora ... ela pegou conjuntivite. tá pegando tudo mundo, né? - responde suspirando.
- e você tá limpando a escola sozinha?
- é, desde segunda-feira, tô praticamente sozinha. o outro terceirizado que devia ajudar, não ajuda. disse que não vai trabalhar mais por frescura de mulher. eu deixei pra lá, nem discuti. tô trabalhando mais de 10h por dia ... as salas lá de cima eu nem esquento mais, não dá tempo mesmo ...

olho para o chão, usava sapatilhas de plástico. a barra da calça azul do seu uniforme estava dobrada. e seus pés mais inchados do que de costume.

- professora, a senhora não sabe o cansaço que eu tô nesses dias ... chego em casa não penso nem em cozinhar ... fazer o que? vai um miojo mesmo, né?

enquanto lavo as mãos, trocamos mais duas ou três palavras. saindo do banheiro, me despeço.
camila sorri, e ela tem um sorriso lindo.
seus dentes enormes e separados dão a ela uma simpatia inconfundível. mas trazem também a marca de uma vida severina.

volto para a sala dos professores.
e antes que o sinal batesse só pude ouvir o comentário irritado da minha colega:
'puta que pariu! vocês viram que não ganhamos o bônus esse ano?
sexta-feira tem assembléia da categoria na praça da república. vai pra merda!
por mim a gente paralisa, ninguém dá aula! e tem outra coisa: em junho tem eleição pra apeoesp, não tem jeito, vamos ter que eleger a alternativa!'

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reproduzo abaixo a resenha do livro a precarização tem rosto de mulher que escrevi para a revista contra corrente nº 5.
o livro é parte da luta travada pelos militantes da liga estratégia revolucionária e do grupo de mulheres pão e rosas, dos quais faço parte, contra a terceirização e a precarização do trabalho.


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Elas são as primeiras pessoas para as quais dou ‘bom dia’, negras, uniforme azul que as diferenciam de todos os outros funcionários da escola estadual onde trabalho. “Tão cedo no batente?” – pergunto às 6h40. “É claro, professora. Tudo precisa estar em ordem pra quando vocês chegarem, não é?” – responde uma das duas terceirizadas que limpam uma escola que atende mais de 800 alunos. Entram todos os dias às 5h da manhã, saem às 16h, param meia hora para o almoço que trazem de casa, zanzeam com vassouras e baldes nas mãos. Sempre juntas, a única coisa que lhes dá identidade é as luvas que usam, que têm seu nome escrito. Ali ninguém fala com elas, nem os alunos, nem os demais funcionários e professores.

Três dias antes de escrever essa resenha tive uma oportunidade de conversar com elas de fato. Numa janela entre duas aulas, folheava um jornal quando entraram na sala de professores. “Precisamos limpar, você se incomoda?” – perguntou com simplicidade. “Claro que não! Aliás, sempre falo com você, mas não sei seu nome”. Começamos a conversar. Trabalham na escola há quatro anos, ali a terceirização começou a partir da cooperativa do bairro, que alistava mulheres para trabalhar na limpeza de escolas e organismos públicos da vizinhança. “Sabe, professora, é sempre com o pessoal daqui de perto, porque eles não pagam vale transporte”. Logo foram transferidas para empresas, com as quais a diretora negocia para mantê-las ali. Assim que começaram a trabalhar eram sete funcionários que cuidavam da limpeza da escola, que funciona nos três períodos, com mais 50 turmas, hoje são apenas duas trabalhadoras. Pergunto se houve aumento do salário, já que o trabalho aumentou mais de três vezes. “Não, professora, eles vão aumentando o trabalho e a gente vai dando conta. Tem que fazer o serviço todo, né?”. Falavam também que terminavam o dia exaustas, com pernas e braços doendo, depois era limpar a casa, fazer o jantar e preparar a própria marmita e também a do companheiro . Tão cansadas que nem a novela dava para ver direito. O salário às vezes atrasa, benefícios não têm nenhum. Eu ouvia aquelas mulheres e me lembrava de outra que conheço, tão parecida com elas – Silvana, resolvi falar do livro. “Vou trazer um presente pra vocês na segunda-feira ...”. “O que, professora? Não precisa se incomodar com a gente!”. “É um livro que fala sobre vocês, sobre mulheres terceirizadas, que dão duro, trabalham limpando um lugar, à noite chegam e casa e trabalham mais ... Acho que vocês vão gostar!”. Mostro a elas o piloto do livro, que estava na minha mochila. Na capa duas terceirizadas, usando uniformes escuros e com vassouras na mão, uma diz para outra: “Olha, podia ser a gente!”.

***

A terceirização faz parte da nossa vida cotidiana, na escola onde trabalho, no metrô que pego para chegar lá, que começa a ser privatizado e terceirizado, na limpeza do meu local de estudo, a Universidade de São Paulo, e em partes dos restaurantes desta universidade, na entrega do livro que lia horas atrás e da pizza que jantei ontem à noite. E como parte daquilo que é corriqueiro, muitas vezes passa por nós de maneira natural e irrefletida. O livro que apresento aqui, A precarização tem rosto de mulher, organizado por Diana Assunção, diretora do Sindicato de Trabalhadores da Usp (Sintusp), membro da Secretaria de Mulheres deste sindicato e fundadora do grupo de mulheres Pão e Rosas, nos mostra essa triste e injusta realidade, e narra uma luta importantíssima, travada em 2005 pelas trabalhadoras e trabalhadores terceirizados da Dima, empresa contratada para limpeza da Usp. Este é um livro militante, escrito de maneira simples e direta, acessível para jovens, estudantes, ativistas, militantes, estudiosos do tema da precarização e, especialmente, para trabalhadores. A partir de entrevistas com uma das principais protagonistas do conflito, Silvana, trabalhadora terceirizada, negra, mãe de família, a quem me referia, reconstruímos a história desta greve, em que os terceirizados se sublevaram contra as péssimas condições de trabalho, contra os assédios morais que sofriam das encarregadas, que chegavam a chamá-los de “escravos”, as humilhações da patronal e contra os atrasos do baixíssimo salário.

Logo que começaram a se organizar, os trabalhadores terceirizados da Dima enfrentaram muitas dificuldades. Estavam divididos em unidades diferentes da Usp, não podiam contar com o auxílio do seu sindicato, o SIEMACO (Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Prestação de Serviços de Asseio e Conservação e Limpeza urbana de São Paulo), constantemente sofriam ameaças de demissão e transferência para locais de trabalho longe da região do Butantã. As dificuldades eram muitas e a solução para elas ficou mais clara quando a organização dos terceirizados encontrou aliados, estudantes trotskistas da Usp, organizados no movimento A Plenos Pulmões, e trabalhadores efetivos da universidade e seu sindicato, o Sintusp. Exibições de filmes foram organizados por estes estudantes, dentre eles A greve, de Sergei Eisenstein, quando uma trabalhadora disse: “Tudo o que queremos fazer está nesse filme!”. Passaram eleger representantes dos trabalhadores terceirizados de cada unidade para compor o que eles chamavam de linha de frente. Eles discutiam semanalmente, debatiam sobre os problemas que aconteciam em cada local, pensando em soluções unitárias e coletivas. A luta contra a patronal se expandia, ganhava contornos mais claros.

Este livro discute as grandes questões sociais e políticas das últimas décadas a partir de um pequeno exemplo. Nos últimos anos vimos o avanço neoliberal sobre a classe trabalhadora, retirando direitos sociais historicamente conquistados, dividindo-a entre efetivos, terceirizados, temporários, sub-contratados, rebaixando a qualidade de vida de milhões. No plano ideológico, a academia e a ideologia dominante produziram rios de tintas sobre o fim da história e sobre o deslocamento da centralidade operária enquanto sujeito de transformação social. Ouvimos todos os dias que não se pode fazer muito contra o atual estado de coisas e que devemos nos conformar nos dedicando a projetos pessoais e ao nosso desenvolvimento individual. Mas a pequena luta das trabalhadoras e trabalhadores terceirizados da Dima questiona tudo isso. A auto-organização operária se mostrou viável, a necessidade de recomposição da unidade das fileiras da classe se mostrou fundamental e possível, a partir da localização do Sintusp neste conflito. Os avanços da subjetividade dos trabalhadores em luta se concretizou na vida de Silvana, que entendeu ali que se ela lutava contra o patrão da Dima, não podia ter “um patrão em casa”. Com dados sobre a trajetória da terceirização da Usp, o livro mostra que o processo mundial de precarização do trabalho tem sim rosto de mulher, e mostra que a sua superação também tem.

Contando com a apresentação das professoras Claudia Mazzei, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Maria Beatriz Costa Abramides, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, esta publicação discute o processo da precarização, e da terceirização como uma de suas facetas, enquanto um processo mundial. A breve explanação sobre este tema em seu prólogo ganha carne nos artigos dos anexos. Um deles sobre a vida e luta de Konstantina Kuneva, trabalhadora terceirizada que sofreu um brutal atentado da patronal por sua organização política na Grécia em 2008, abalada pelas primeiras conseqüências da crise capitalista e também pelas primeiras respostas das massas. O outro é uma entrevista com duas dirigentes operárias do novo sindicalismo de base na Argentina, em que Catalina Balaguer e Lorena Gentile relatam suas lutas em defesa dos direitos das trabalhadoras e no combate contra a terceirização.

A precarização tem rosto de mulher é parte da coleção Iskra Mulher, que já publicou outros títulos, como Pão e Rosas – identidade de gênero e antagonismo de classe no capitalismo e Lutadoras – histórias de mulheres que fizeram história, e foi organizado por militantes da Liga Estratégia Revolucionária (LER-QI) e do grupo latino-americano Pão e Rosas, que organiza mulheres trabalhadoras, efetivas e terceirizadas, estudantes e jovens também na Argentina, Chile e México. Esperamos com essa publicação aportar para a reflexão, estudo, organização e luta daqueles que não naturalizam a divisão e exploração da classe trabalhadora, e que este livro seja um instrumento de combate à terceirização, que como diz a campanha de nosso grupo de mulheres, “escraviza, humilha e divide”.

***

Lançamos o livro no momento histórico em que vemos uma nova “primavera dos povos” na Tunísia, Líbia e Egito, onde as massas se levantam contra governos ditatoriais e pró-imperialistas que durante décadas oprimiram e espoliaram os trabalhadores e o povo pobre, e saem às ruas exigindo a queda destes ditadores e reivindicando também melhorias nas condições de vida, aumento de salários e liberdade de organização política. Estas mobilizações foram antecedidas por conflitos importantes na Grécia, Espanha e França, onde a classe trabalhadora recorreu aos seus métodos históricos de luta como piquetes, paralisações, manifestações de rua e greves gerais para combater as conseqüências da crise econômica, que se manifestam nas políticas governamentais destes Estados endividados, que têm por objetivo descarregar em suas costas o custo da crise capitalista. Vemos essas respostas iniciais das massas questionar o triunfalismo da burguesia, que imperou nas subjetividades dos trabalhadores e da juventude. Ao contrário dos postulados de Fukuyama, a história continua e as massas mobilizadas demonstram nas ruas a sua força.

Por outro lado, no Brasil, onde os “tempos” da crise são mediados por um crescimento econômico baseado na alta dos preços das commodities e no consumo do mercado interno, ainda prima uma subjetividade gradualista e passiva. Apesar do crescimento vertiginoso dos postos de trabalho precário, das enchentes que assolam a população pobre nas favelas, morros e periferias, da violência policial contra a população negra, parte importante do povo tem ilusão de que a eleição da primeira presidenta, Dilma, pode solucionar os problemas que ainda afetam o país. Inclusive um setor importante do movimento de mulheres, que naturalizou a posição escandalosa da então candidata, usando a bandeira histórica da legalização do aborto como moeda de troca nas eleições, para ganhar o apoio de setores católicos e evangélicos.

Com esta publicação também queremos dialogar com essa realidade, em que vemos a crise capitalista se desenvolver e ganhar concretudes desiguais e combinadas no globo. É preciso que nos apropriemos das lutas, ainda que pequenas, que a classe trabalhadora começa a travar no Brasil. Essa é a forma de não partirmos do zero e aprendermos com as lições das vitórias e também das derrotas da classe. Por isso convidamos todas e todos a lerem o livro A precarização tem rosto de mulher e difundi-lo de forma militante, como um instrumento que sirva para fortalecer aqueles que lutam contra este sistema de exploração e opressão.



quarta-feira, 23 de março de 2011

em uma explosão vermelha, grito: sim, carrego bandeira!

I
estava sentada com uma promessa de amizade. e era uma promessa linda.
entre os dedos finos e longos segurava o cigarro, sempre intruso de nossas conversas.
os olhos eram redondos e lustrados, atenta me fitava e contava também sobre a sua história.

comprimidas entre os ponteiros do relógio, conversávamos sobre a vida das mulheres.
segredávamos dramas e frustrações de soldados feridos de morte, que encontraram sua cura na luta, quando a realidade-sem-mediação nos interrompeu:
era tania mara - nome de artista encarnada em mulher comum, queria dinheiro pra passagem.
totalmente banguela, esmalte vermelho, velho e descascado, nas unhas dos pés e das mãos.
olho roxo e rosto inchado - apanhou do companheiro.
bêbada nos contava suas "histórias engraçadas que só aconteciam com ela": pobreza, violência e aborto.
para nos tranqüilizar disse tinha profissão, era cartomante, tinha vida de cigana.

naquele momento chovia uma garoa fina que, para mim, se parecia mais com uma tinta densa e impiedosa que carregava o mundo com tons de realidade: era a vida-apenas, sem mediação.

apunhalada pelos ponteiros do relógio e aflita pelo sinal que tocara na escola onde trabalho, quilômetros dali, entro no metrô e rabisco algumas linhas - essas que você está lendo agora.


II

a realidade se apresenta assim para os revolucionários, como vida-apenas, sem mediação.
e a vida-apenas é vento bravo e enxurrada zangada, não se compadece daquilo que é leve e pouco denso.
é preciso, pois, decantar a subjetividade, engrossá-la.
é preciso transformar a subjetividade em óleo viscoso, que lubrifique os dentes das engrenagens.
única e difícil maneira de enfrentar esse momento, em que o motor da vida volta à ativa, depois de décadas de ferrugem. eis que do metal oxidado floresce o vigor e a resistência do ferro - essas são as notícias que ouço deste vasto-mundo.

III

mas se do metal oxidado, entre véus e turbantes, floresce a resistência, ainda abro a janela e me deparo com a ela. a vida-apenas permanece lá fora, junto aos homens que andam, comem, trabalham e vivem a contradição de uma realidade-sem-mediação.
me pergunto: onde nos humanizarmos?, se o mundo ainda é este, de vida-apenas, em que a realidade baila, como bailarina louca, dura e impaciente?

meus olhos só alcançam a gangrena, chaga aberta e a ferida que sangra.

IV
meus olhos só alcançam a gangrena, chaga aberta e a ferida que sangra.
mas da história recupero a gaze, o aparelho cirúrgico e a amoxicilina:
'levanta, soldado-ferido! é hora de tornar insurretos os escravos acorrentados!'

acendeu a faísca, queimou a fagulha.
a dor da vida-apenas se transfigura em ardência transformadora, em chama revolucionária.

V
respeitável público! com licença, poética?
eis que anuncio em uma explosão vermelha: abre alas, que meu coração carrega bandeira!
abre ouvidos para o discurso: a minha escrita é um manifesto!



[difícil e alegre tarefa de colocarmos de pé a mediação entre a vida-apenas e vontade de transformá-la.]


.:.

quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
não sou feia que não possa casar,
acho o rio de janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
mas o que sinto escrevo. cumpro a sina.
inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
mulher é desdobrável. eu sou.

.com licença poética.adélia prado.