quarta-feira, 23 de março de 2011

em uma explosão vermelha, grito: sim, carrego bandeira!

I
estava sentada com uma promessa de amizade. e era uma promessa linda.
entre os dedos finos e longos segurava o cigarro, sempre intruso de nossas conversas.
os olhos eram redondos e lustrados, atenta me fitava e contava também sobre a sua história.

comprimidas entre os ponteiros do relógio, conversávamos sobre a vida das mulheres.
segredávamos dramas e frustrações de soldados feridos de morte, que encontraram sua cura na luta, quando a realidade-sem-mediação nos interrompeu:
era tania mara - nome de artista encarnada em mulher comum, queria dinheiro pra passagem.
totalmente banguela, esmalte vermelho, velho e descascado, nas unhas dos pés e das mãos.
olho roxo e rosto inchado - apanhou do companheiro.
bêbada nos contava suas "histórias engraçadas que só aconteciam com ela": pobreza, violência e aborto.
para nos tranqüilizar disse tinha profissão, era cartomante, tinha vida de cigana.

naquele momento chovia uma garoa fina que, para mim, se parecia mais com uma tinta densa e impiedosa que carregava o mundo com tons de realidade: era a vida-apenas, sem mediação.

apunhalada pelos ponteiros do relógio e aflita pelo sinal que tocara na escola onde trabalho, quilômetros dali, entro no metrô e rabisco algumas linhas - essas que você está lendo agora.


II

a realidade se apresenta assim para os revolucionários, como vida-apenas, sem mediação.
e a vida-apenas é vento bravo e enxurrada zangada, não se compadece daquilo que é leve e pouco denso.
é preciso, pois, decantar a subjetividade, engrossá-la.
é preciso transformar a subjetividade em óleo viscoso, que lubrifique os dentes das engrenagens.
única e difícil maneira de enfrentar esse momento, em que o motor da vida volta à ativa, depois de décadas de ferrugem. eis que do metal oxidado floresce o vigor e a resistência do ferro - essas são as notícias que ouço deste vasto-mundo.

III

mas se do metal oxidado, entre véus e turbantes, floresce a resistência, ainda abro a janela e me deparo com a ela. a vida-apenas permanece lá fora, junto aos homens que andam, comem, trabalham e vivem a contradição de uma realidade-sem-mediação.
me pergunto: onde nos humanizarmos?, se o mundo ainda é este, de vida-apenas, em que a realidade baila, como bailarina louca, dura e impaciente?

meus olhos só alcançam a gangrena, chaga aberta e a ferida que sangra.

IV
meus olhos só alcançam a gangrena, chaga aberta e a ferida que sangra.
mas da história recupero a gaze, o aparelho cirúrgico e a amoxicilina:
'levanta, soldado-ferido! é hora de tornar insurretos os escravos acorrentados!'

acendeu a faísca, queimou a fagulha.
a dor da vida-apenas se transfigura em ardência transformadora, em chama revolucionária.

V
respeitável público! com licença, poética?
eis que anuncio em uma explosão vermelha: abre alas, que meu coração carrega bandeira!
abre ouvidos para o discurso: a minha escrita é um manifesto!



[difícil e alegre tarefa de colocarmos de pé a mediação entre a vida-apenas e vontade de transformá-la.]


.:.

quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
não sou feia que não possa casar,
acho o rio de janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
mas o que sinto escrevo. cumpro a sina.
inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
mulher é desdobrável. eu sou.

.com licença poética.adélia prado.

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